Comissão de Proteção ao Idoso

As pessoas idosas vítimas de crime

A Resolução do Conselho de Ministros nº2/2024, de 5 de janeiro, aprovou a Estratégia Nacional para os Direitos das Vítimas de Crime – 2024-2028 (ENDVC).

A ENDVC foi elaborada por um grupo de trabalho presidido pelo Ministério da Justiça e constituído por representantes de outras áreas governativas como a administração interna, a saúde, o trabalho, solidariedade e segurança social e a educação. Este grupo integrava também a Procuradoria-Geral da República, a Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a Associação de Mulheres Contra a Violência, a União de Mulheres Alternativa e Resposta, o Instituto de Apoio à Criança e duas professoras da Universidade do Minho especialistas em vitimologia.

A vitimação secundária pode ser definida como o tratamento inadequado das instituições relativamente às vítimas de crime. Estas formas de tratamento traduzem-se numa violação dos direitos da vítima que acresce à vitimação primária que ocorre quando o crime é praticado. Este fenómeno que verifica-se fundamentalmente nas polícias, no Ministério Público e nos tribunais através de práticas com um efeito vitimizador no decurso do processo penal, mas também tem incidência nos serviços de saúde e nos demais organismos públicos que têm intervenção nesta área (Antunes, 2023, p. 16).

Os principais factores de vitimação secundária são o sentimento da vítima de que a sua perspetiva não é suficientemente considerada, a prestação múltipla de declarações com a necessidade de descrição do crime, o que implica a sensação de que a vítima também está a ser julgada, e o excesso de deslocações às diversas instituições que podiam ser facilmente substituídas por outras formas de comunicação.

Os estudos demonstram a necessidade de melhorar o apoio às vítimas de crime e evitar os aspetos de vitimação secundária.

É também necessário melhorar a informação para que as pessoas sejam capazes de identificar as situações de vitimação, conheçam os seus direitos enquanto vítimas e possam exercê-los cabalmente.

Têm sido propostas soluções que se inserem naquilo que é habitualmente designado de criminologia pacificadora. Propõe-se um processo penal a duas velocidades que distingue a criminalidade grave e a pequena e média criminalidade (Antunes, 2023, p. 17). Relativamente a estas, é defendido o reforço dos mecanismos de justiça restaurativa com a resolução dos litígios através de soluções de consenso alcançadas com a intervenção ativa da vítima e do agressor (Santos, 2021, p. 33).

A ENDVC consiste num instrumento orientado para a consciencialização da comunidade, a capacitação das vítimas de crime e a implementação de um plano organizacional de melhoria das respostas públicas e privadas nesta matéria.

Pretende-se implementar as orientações internacionais relativas às vítimas de crime e adotar soluções de experiência comparada que tiveram resultados positivos noutros países.

Nos instrumentos internacionais destacam-se a Declaração dos princípios básicos de justiça para as vítimas de crime e abuso de poder, adotada pela Resolução nº40/34 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 29 de novembro de 1985, e a Diretiva nº2012/29/UE do Parlamento e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.

Deve também referir-se a Estratégia da União Europeia sobre os direitos das vítimas – 2020-2025 que visou uma melhor aplicação prática das normas de direito europeu em matéria de direitos das vítimas.

No plano interno importa reconhecer o papel do Tribunal Constitucional que desde muito cedo chamou a atenção para o reconhecimento dos direitos das vítimas de crime. A este propósito, destaca-se o Acórdão nº690/98, de 15 de dezembro, que reconheceu às vitimas um interesse específico na justiça penal que devia ser tutelado e o direito a um papel participador ou protagonista no processo penal. Esta jurisprudência contribuiu para a introdução do artigo 32º nº7 da Constituição que reconheceu o direito das vítimas a intervir no processo penal.

A ENDVC divide-se em seis eixos estratégicos de intervenção:

  • Apostar na prevenção do crime e da vitimização, por exemplo promovendo a literacia em matéria de vitimação por forma a que seja possível universalizar a compreensão da qualidade de vítima de crime;
  • Promover a informação e o acesso à justiça capacitando as vítimas nos seus direitos através do aumento da implantação territorial dos Gabinetes de Apoio à Vítima, da consolidação da linha nacional de apoio à vítima e da criação de uma solução digital com componente móvel que, com georreferenciação, permita aceder a informação sobre direitos e serviços, assim como apresentar queixa, participação ou denúncia;
  • Simplificar o processo de acesso aos serviços de apoio às vítimas e valorizar o trabalho feito por estes serviços garantindo a integridade dos direitos das crianças e jovens vítimas em acolhimento de emergência ou casas de abrigo;
  • Criar condições para a participação da vítima no processo penal, por exemplo criando mecanismos de transporte gratuito sempre que os custos ou a distância sejam obstáculo à comparência da vítima às diligências necessárias, adotar protocolos policiais e judiciários que impeçam o contacto físico ou visual entre vítima e infrator durante diligências processuais e adaptar o modelo da Casa da Criança à realidade portuguesa;
  • Impulsionar uma cultura promotora dos direitos das vítimas, empatia e compreensão nas organizações através da criação e desenvolvimento de um suporte adequado à formação multidisciplinar dos operadores judiciários, dos órgãos de polícia criminal e das equipas multidisciplinares de apoio aos tribunais em matéria de revitimação, vitimização secundária e técnicas de inquirição a vítimas;
  • Potenciar o conhecimento, financiamento, monitorização e avaliação das especificidades da realidade portuguesa e implementar políticas públicas responsáveis e eficazes realizando um inquérito nacional de vitimação.

 

Relativamente a cada um destes eixos são estabelecidos objetivos gerais e específicos e medidas concretas a desenvolver.

Estes eixos de atuação demonstram que os aspetos essenciais da ENDVC são a prevenção da vitimação, a maior efetividade dos direitos das vítimas de crime, a adoção de respostas públicas e privadas para a sua concretização e a minimização da vitimação secundária.

Uma das medidas consiste em retirar o agressor da casa de morada de família com o seu encaminhamento para os recursos sociais evitando-se que seja a vítima a ter de sair para garantir a sua proteção. Esta possibilidade já existe, mas é necessário torná-la efetiva. Será apresentada uma proposta legislativa com esta finalidade e iniciado um projeto piloto para a sua avaliação.

A ENDVC adota um conceito de vítima em consonância com o estabelecido no Código de Processo Penal e no Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº130/2015, de 4 de setembro.

São consideradas vítimas as pessoas singulares que sofreram um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte e as crianças ou jovens até aos 18 anos que sofreram um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.

É considerada vítima especialmente vulnerável a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.

O conceito de vítima especialmente vulnerável está relacionado com a natureza do crime ou com as características ou circunstâncias pessoais da vítima.

A ENDVC considera que são especialmente vulneráveis as vítimas de homicídio, de tráfico de pessoas e crimes conexos, de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, de crimes de ódio, de violência de género, de violência doméstica, de cibercriminalidade, de terrorismo, de outros ilícitos que também integrem a criminalidade violenta e especialmente violenta e ainda alguns grupos específicos, como as crianças e jovens, as pessoas idosas, os migrantes, as pessoas LGBTQIA+ e as pessoas com deficiência.

Os idosos incluem-se nas pessoas diretamente visadas pela ENDVC. Com efeito, quando são vítimas de crime, devem ser considerados pessoas com uma fragilidade específica que justifica uma proteção adicional e um tratamento prioritário e especializado.

Afiguram-se-nos  adequadas para as pessoas idosas as seguintes medidas:

  • Realização de campanhas de informação sobre os fenómenos criminais que atingem de forma particular as pessoas idosas como a violência contra a pessoa idosa (violência na idade maior) e os furtos e burlas contra idosos;
  • Realização de iniciativas junto da população idosa e dos familiares para a divulgação dos direitos das vítimas e a forma de os exercer;
  • Promoção da capacitação da pessoa idosa para a defesa e o exercício dos seus direitos por sua iniciativa sempre que tal seja possível;
  • Ponderação do alargamento do âmbito de aplicação da Lei nº21/2007, de 12 de junho, que aprovou o regime da mediação penal, relativamente às pessoas idosas, uma vez que a justiça restaurativa é especialmente adequada para os idosos porque tendem a privilegiar uma reparação emocional e não apenas patrimonial e os litígios ocorrem com frequência no âmbito de relações familiares que podem ser restabelecidas;
  • Incremento das formas de inquirição à distância tendo em vista evitar deslocações excessivas e muitas vezes penosas das pessoas idosas às polícias, ao Ministério Público, aos tribunais e aos organismos da administração pública;
  • Adoção de medidas específicas de acolhimento dos idosos quando é necessária a presença física, por exemplo com a informação prévia de que podem fazer-se acompanhar por uma pessoa da sua confiança para auxiliar no acesso aos serviços, embora com o cuidado de que não deve substituir-se às pessoas idosas, ou com a disponibilização de um funcionário que proceda ao seu acompanhamento.

 

Referências

  • Antunes, Maria João, Direito processual penal, Almedina, 2023;
  • Dias, Jorge de Figueiredo, O problema do direito penal no dealbar do terceiro milénio, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007;
  • Monte, Mário Ferreira, Multiculturalismo e tutela penal: uma proposta de justiça restaurativa, Almedina, 2014;
  • Morais, Teresa, Violência doméstica – o reconhecimento jurídico da vítima doméstica, Almedina, 2019;
  • Oliveira, Maria Manuel Teodoro, A justiça restaurativa e a mediação penal: ponto de encontro entre agressor e vítima, Universidade Católica Portuguesa, 2021;
  • Reis, Sónia, A vítima na mediação penal em Portugal, Revista da Ordem dos Advogados, 2010;
  • Santos, Cláudia Cruz, O direito processual penal português em mudança: rutura e continuidades, Almedina, 2021.